22 de jun. de 2006

Concreta abstração

Você está no carro em movimento, juntamente com uma pessoa. Duas e cinco da tarde. As portas já estão fechadas. Fazer o CPF? Hoje não tem mais tempo, só amanhã agora. Você resolve aproveitar a carona para ir a um cyber café, pegar a prova de vestibular que você tanto precisava, pois a Internet em casa não estava funcionando direito.Poucos segundos, a tensão dentro do carro aumenta.

- Você não vai.

- Por que?

-Porque não.

-Você está muito solta.

-Eu?!

-É. Já perdi minha confiança em você.

-...

E não disse mais nenhuma palavra em minha defesa enquanto ouço injustiças e palavras mal pensadas. Eu nem sequer me movo, fecho minha boca e não me atrevo a atrapalhar aquela retórica tão bem explanada por quem mais sabe fazê-la.

Tudo ao meu redor torna-se mais perceptível: a lombada, tão bem lineada; os meus tênis, tão quietos e solitários; a água suja do esgoto correndo, sempre com tanta pressa e sem destino certo; o sapo atropelado na pista, com uma função tão sem importância na Terra; o autor daquelas ondas sonoras que me confundiram, sempre do mesmo jeito, e sua confiança, tão impedida de me conhecer (será mesmo?).

“(...)Em vão tento me explicar, os muros são surdos.Sob a pele das palavras há cifras e códigos.O sol consola os doentes e não os renova.As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.(...)”

(A Rosa do Povo, Carlos Drummond de Andrade)

-Bi bi! O carro sabia falar, nunca havia percebido. Descongelei e fui abrir o portão. Após , vou para o meu quarto, para meu mundo.Aquelas ondas sonoras devem ter refletido em alguma coisa, pois acabaram voltando para os meus ouvidos. Mas dessa vez, elas se fixaram e me causaram uma tempestade chuvosa, como essas que aparecem do nada e causam maior desgraça. Merda! Onde está minha rã quando eu mais preciso dela?“Eu já perdi minha confiança em você.” Que confiança? Ela nunca teve confiança em mim ( ou mesmo em ninguém), não seria agora que essa pessoa a perderia. Talvez eu não seja um modelo que ela queria, eu não posso ser o que eu não sou, mesmo às vezes eu estando atuando. Para a sua sociedade, eu uso máscaras. Infelizmente. Sou covarde, eu sei.As palavras dos outros só têm existência se eu quiser. É pode ser. Poderia ter cantado ou, então, ter tapado os ouvidos para não ouvir aquelas ondas sonoras tão perfurantes. Mas eu não consegui, talvez eu não queria. Ou não podia.

Oh, por que a Edslândia não está aqui? Talvez ela seja o pivô para eu estar escrevendo isso. Só me sobrou um papel, nem mesmo um humano. Ela foi embora, libertou-se das minhas palavras chatas e tristes. Cansou-se de mim e foi atrás do seu futuro. Feliz seja ela, está liberta, longe das coisas que a magoam. Felizes são os que podem deixar tudo para trás e agarrar o mundo, independente dos outros, dos que somente fazem você sentir que sua vida é uma merda e você tem que ser um clone de todas as outras pessoas, que você tem que ser como todos foram antes de você. E que você tem que ser submisso, como um servo o é para um senhor feudal, como era...“O forte tira do fraca. Mas o mais esperto tira do forte.” ( Ian Cadwell e Dustin Thomason)

Sempre foi assim: o menos rico é sempre submisso ao mais forte; o mais privilegiado tem sempre um poder superior ao que não tem; e o pai tem sempre mais poder sobre o filho: injustiça? Talvez sim, talvez não. É a convenção, é essa moralidade ridícula.